sexta-feira, 11 de outubro de 2013

terça-feira, 1 de outubro de 2013

CRÔNICAS DOS DRAGÕES DE TITÂNIA


O Livro de Pandora
por Renato Rodrigues
 
Existe um lugar que parece ficar longe daqui onde encontramos pelas ruas aventureiros, elfos, pégasus, gladiadores, gnomos, anões, dragões e outros bichos. Mas só parece que fica longe. Ele se chama Império de Titânia, o maior cidade do continente e o centro do mundo. Pelo menos é que acham os titanianos que costumam basear o centro do universo em seus próprios umbigos.
Seria o “umbigocentrismo”, como classificou certa vez Augustos Máximos Khosta, um (não tão) ilustre mago estrangeiro que tenta hoje a vida em Titânia. Como eu disse há pouco, essa terra  parece ficar longe, mas está na verdade ao alcance de qualquer um que queira se arriscar numa aventura. Todos os caminhos levam à Titânia, já dizia o dito popular.
– Mestre Khosta, já está a acordado? – diz um menino de voz esganiçada e excelente dicção.
– Que ééée, garoto?... Apague esse Sol que eu quero dormir...
– Mas o senhor me disse para vir acordá-lo cedo a fim de começarmos a trabalhar em meu novo estágio! – disse o jovem que não devia passar de 14 anos de idade.
– Budega... Quando foi que eu cometi essa sandice de contratar um aprendiz? Vá se embora e volte depois do almoço, Chester!
– O senhor quer que eu dê uma polida na capa de seu grimório antes?
– LARGA ISSO AÍ, seu bajuladorzinho... Me espere lá em baixo que eu já vou descer...
 
            Apesar do jeito ranzinza, Khosta devia ser apenas uns 10 anos mais velho que o jovem Chester Hitfield, seu recém empossado estagiário. Poderiam ser até irmãos. Khosta morava na Pensão da Adria, o lar também de seus amigos aventureiros que a essa hora já deviam estar por aí fazendo alguma “titanice”. Khosta adorava usar esses neologismos para classificar os hábitos beligerantes dos nativos locais. Vestiu-se adequadamente com sua roupa negra com uma estrela dourada no peito e desceu para comer algo levando consigo seu tão aclamado grimório, um livro de magia com inteligência própria capaz de realizar proezas que nem teve tempo suficiente de explorar.
            Depois do café Khosta chamou o menino e ambos subiram as escadas até o segundo andar da pensão.
            – A Adria disse que eu podia usar esse quarto para organizar uma biblioteca. O reitor da Escola de Magia me cedeu alguns livros e eu já encomendei outros com mercadores... sua tarefa será organizar isso tudo em ordem!
            Chester não conseguiu deixar de transparecer seu desapontamento afinal organizar livros é o que ele já fazia na biblioteca em seu estágio anterior. Achou que com Khosta, o sagaz arcano do Reino de Avalônia, o cérebro pensante de uma ordem militar em ascensão como os Dragões de Titânia, poderia praticar magias de verdade. Pensou que logo na primeira semana explodiria alguma coisa, levitaria pessoas, transmutaria metais e até impressionaria aquela menininha ruiva que sentava na frente da classe com algum sortilégio de amor que o tornasse menos insignificante.
            – Mestre Khosta, sem duvidar de sua incondicional sabedoria, essa tarefa não estaria aquém de minhas habilidades?
            – Um passo de cada vez, aprendiz... Os livros são seus melhores amigos! Cuide deles e eles cuidarão de você!
            Chester sorriu amarelo enquanto o seu professor deixava a sala balançando a capa negra, pegando uma maçã na mesa do corredor e descendo pelas escadas rumo a saída da pensão.
            Olhando àquelas caixas emboloradas cheias de livros e papiros cobertos de ácaros o garoto se perguntava por onde começar. Até que viu em cima da escrivaninha sua resposta.
            – O Livro de Pandora?
            Na pressa de se livrar do bajulador aprendiz, Khosta largou em cima da mesa seu precioso grimório. Era uma chance em um milhão de ter em mãos tão poderoso objeto de conhecimento pois o mago logo se daria conta de que estava sem ele. Um de seus amigos, o anão Telus, brincava que Khosta dormia abraçado àquele grimório. Outro amigo, Sylvester, dizia que ele até tomava banho com o livro debaixo do braço enquanto a freira Diane jurava já ter visto o mago levando livro para tomar Sol no parque . Tudo exagero. Menos a parte dele realmente dormir abraçado ao livro...
            Chester olhou para os lados e não vendo ninguém, fechou a porta, sentou à mesa e o abriu o grimório numa página qualquer.
A página estava em branco. “Muito argucioso. Deve ser algum feitiço de proteção contra bisbilhoteiros...” pensou o prodígio.
– Vamos começar com algo leve... Pandora, feitiço de invisibilidade! – ordenou.
E o artefato tremeu em suas mãos. Logo depois suas folhas foram passando uma a uma como se uma lufada de vento tivesse entrado pela sala e uma página aberta mostrava o feitiço pedido. Chester apenas o leu em voz alta e livro obedeceu... desaparecendo em cima da mesa.
– Iiihhhhhghg... Ai... – gaguejava o menino enquanto procurava apalpar o grimório em cima da mesa – Ah, que bom, ele ainda está aqui... Mas está... Redundantemente invisível!
O menino respirou fundo e com um tom mais cordial disse:
– Reverter, Pandora!
O livro se auto-folheou novamente ainda invisível e virou de ponta à cabeça em suas mãos.
– RAIOS, Pandora! Não foi isso que eu...
As páginas do livro voltaram a se mexer nas mãos do menino e quando pararam lhe derem um moderado choque elétrico jogando-o contra uma pilha de livros. Com os cabelos castanhos todos arrepiados e os óculos tortos ele se levantou tremendo e mais uma vez reclamou:
– Ora, seu... Ou sua... Droga de livro temperamental...
Foi quando se deu conta que o grimório caíra em algum lugar ali no chão. E ainda estava invisível, claro.
– Ohhh, carambolas... Onde você está, Pandorinha? Apareça por favor, Mestre Khosta deve retornar a qualquer momento e se souber que eu o usei... E que o fiz sumir... Ou que talvez o tenha incinerado com um raio eu vou perder muito mais do que um estágio...
Apavorado, correu para a janela e viu seu mestre retornando a pensão a passos largos.
– Pelas barbas do César, ele deu falta do livro! Cadê você, Pandora?... – Choramingava Chester ajoelhado ali no chão enquanto apalpava por cima dos livros espalhados até que achou o danado.
– Ah, graças a Zeus... Vamos lá: PANDORA, REVERTA O FEITIÇO DE INVISIBILIDADE!
As folhas passaram uma a uma enquanto o menino já calculava que Khosta deveria estar  subindo as escadas.
– Anda logo... Anda logoooo! – dizia em voz baixa por entre os dentes até que as páginas, ainda invisíveis, pararam. – O que houve?... Ah, não... eu pedi o feitiço e ele me deu! MAS EU NÃO CONSIGO VER!
Num estalo ele pegou um toco de grafite em cima da mesa depois colocou em cima da página aberta uma folha de papel em branco e começou a rabiscar. As letras do grimório, mesmo sendo mágicas, tinham relevo e só assim o garoto conseguiu ler o feitiço.
– CONUERTERE INUISIBILITAS!!! – disse Chester antes de um faixo de luz quase o cegá-lo.
Foi quando Augustos Khosta entrou de rompante na sala e apontou em tom acusatório:
– Aháaa, aí está você!!!
– Falou comigo, mestre Khosta? – respondeu Chester suando frio enquanto colocava um livro na estante.
– Há? Não... falei com... deixa para lá. – respondeu o mago indo em direção a escrivaninha onde estava o Livro de Pandora visivelzinho da silva e aparentemente intocado.
– Continue o bom trabalho, aprendiz. Depois pode voltar pra casa, amanhã retomaremos as aulas.
– Mestre Khosta, posso fazer uma pergunta? O senhor deixou o livro para trás de propósito, não foi?
O mago nada respondeu e Chester continuou:
– Foi para me dar uma lição sobre a importância de não se ir com sede ao pote, sobre aproveitar o conhecimento aqui nesses livros mais básicos antes de chegar aos estudos mais densos e poderosos, não foi?
– E a que conclusão chegou, aprendiz?
– Genial, brilhante como tudo o que o senhor faz, digno dos sábios filósofos de Spartáquia, absolutamente...
– TÁ BOM, agora já puxando o saco, babão... Cataloga isso aí direito e até amanhã!
O mago bateu a porta antes de sair enquanto o rapaz ficou ali em sossego pensando na valorosa lição que aprendera com seu mestre. E do lado de fora, Khosta abraçava o livro dizendo em voz baixa:
– Perdão, Pandorinha, eu juro que não te esqueço mais por aí!
 

Fim

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Esse foi um texto encomendado pelo site Sobre Livros para comemoração de seu 3o. aniversário e que acabou originado uma série de pequenos contos que eu gostaria de trazes esporadicamente (espero que mensalmente pelo menos) mostrado um pouco do dia a dia dos intrépidos moradores da Pensão da Adria e dos demais habitantes que rodeiam os Dragões de Titânia:

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